SOBRE A COMBUSTÃO DO PAPEL
SOBRE A COMBUSTÃO DO PAPEL
José Fernandes de Lima[1]
Aprendemos na educação básica que a combustão é uma reação química de oxidação, que libera calor. A reação de combustão acontece quanto a temperatura ultrapassa um determinado valor chamado temperatura de ignição ou ponto de ignição. Segundo esse entendimento, quando a temperatura aumenta, as moléculas adquirem energia suficiente para iniciar a reação.
Os componentes da reação de combustão são chamados de combustível e comburente. Essa reação é caracterizada pelo consumo de um combustível, isto é, o material que é gasto para produzir energia, na presença de um comburente, que na maioria das vezes costuma ser o oxigênio.
As reações de combustão necessitam de uma fonte de energia externa para que sejam iniciadas. Por exemplo, é necessária uma faísca elétrica para que ocorra a combustão da gasolina ou do etanol no motor dos automóveis. Dentro do motor, o etanol reage com o oxigênio para formar dióxido de carbono e água e liberar energia térmica.
Uma vez iniciada, a reação de combustão libera energia suficiente para realimentar a reação até que um dos reagentes acabe.
São também exemplos de reações de combustão a queima de uma vela, a queima da lenha da fogueira e do gás de cozinha.
A queima do papel é também uma reação de combustão entre a celulose e o oxigênio presente no ar. O papel usado nos livros é feito de fibras de celulose, material sensível ao fogo.
A temperatura de ignição do papel pode variar ligeiramente a depender das condições e da potência da fonte de calor. Em geral, o papel entra em combustão à temperatura de 233 oC. Transformando 233 oC para a escala Fahrenheit, obtemos 451,4 oF.
Essa temperatura tornou-se conhecida por causa do livro de Ray Bradbury, denominado Fahrenheit 451.
Publicado em 1953, Fahrenheit 451 descreve um mundo no qual os livros são proibidos e os bombeiros têm a missão de queimá-los.
O livro descreve um lugar onde foi instaurada uma cultura de combate ao pensamento crítico e autônomo dos indivíduos. Por isso, os livros são proibidos e os bombeiros têm a missão de queimá-los.
O personagem principal, Guy Montag faz parte de uma equipe de bombeiros cujo trabalho é incendiar livros, pois esses objetos eram considerados maléficos aos cidadãos.
Nessa obra, o escritor Ray Bradbury faz uma crítica ao autoritarismo e à repulsa ao pensamento crítico instalado nos Estados Unidos no período do pós-guerra.
Em 1966, a história foi adaptada para o cinema pelo cineasta Francois Truffaut e fez um grande sucesso.
Essa história não acontece apenas na ficção. Em diversas ocasiões, ao longo da história da humanidade, os livros foram encarados como inimigos, notadamente por instituições e governos autoritários.
No século XV, durante a inquisição espanhola, manuscritos árabes foram queimados pela Igreja Católica. No século XVI, a Igreja Católica produziu o Index Librorum Prohibitorum (índice dos Livros Proibidos) que consistia em uma lista de publicações consideradas impróprias para leitura pelos católicos, literalmente, uma lista de livros proibidos. Essa lista só foi abolida em 1966.
Em maio de 1933, milhares de livros foram queimados em praça pública, na Alemanha, com o apoio da população influenciada pela propaganda nazista elaborada por Joseph Goebbels. Os livros queimados foram aqueles que segundo o governo propagavam ideias que destoavam da ideologia nazista.
O objetivo era impedir que o conhecimento contido em tais livros “contaminassem” as ideias da população.
Por incrível que pareça, a distopia imaginada por Ray Bradbury para criticar o comportamento da sociedade americana na década de 1950, está sendo revisitada em pleno século XXI.
Em diversas localidades nos Estados Unidos, grupos de pais e membros da comunidade, representantes de movimentos de extrema direita estão retirando das escolas e das bibliotecas livros que consideram perigosos. Estados como o Texas, a Flórida e a Pensilvânia estão censurando livros e retirando-os das escolas. Essa proibição tem afetado livros de toda natureza.
O Departamento de Educação da Flórida rejeitou 54 livros de matemática acusados de conter referências a tópicos proibidos.
Essa mesma distopia já andou ensaiando seus passos nas terras brasileiras. Em 2020, a Secretaria de Educação do Estado de Rondônia mandou recolher 43 títulos das escolas públicas. Dentre os livros que deveriam ser recolhidos estavam Macunaíma, de Mário de Andrade, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca. A ordem foi suspensa depois de denúncia feita em rede nacional.
Esses fatos têm em comum a tentativa de governos autoritários de impedir que determinados conhecimentos cheguem à população. Não se trata de queimar livros para exercitar a reação de combustão, mas de queimar ideias e controlar informações.
O suporte físico do livro está migrando do papel para o meio eletrônico, o que coloca um novo desafio para aqueles que desejam queimar livros.
A fogueira de livros segue sendo bastante simbólica, mas já não garante, com eficiência, o propósito buscado pelo autoritarismo. Queimam-se os livros, mas não as ideias neles contidas.
Resta saber se esse novo desafio afetará os impulsos autoritários.
Impressionante como o autor consegue manter o leitor preso ao texto. Um texto rico, maravilhoso de ler e com uma mensagem importante - o autoritarismo dos governos (por maior que seja) contra as ideias que não lhes agradam nunca se transformarão em cinzas porque elas não podem ser queimadas, sempre a humanidade encontrará uma forma de divulgá-las.
ResponderExcluirParabéns ao prof. Lima pelo excelente texto.