SOLIDIFICAÇÃO E ESFARELAMENTO DO TEMPO
SOLIDIFICAÇÃO E ESFARELAMENTO DO TEMPO
José Fernandes de Lima[1]
O tempo é, provavelmente, um dos mais antigos enigmas da humanidade. Os seres humanos percebem a passagem do tempo. Essa percepção nos ajuda a ligar os eventos entre si, pô-los em sequência e entender as suas relações causais. Funciona como um instrumento essencial para a sobrevivência, pois permite-nos evitar perigos e aproveitar oportunidades.
A diferença entre o que sentimos a respeito do tempo e os sentidos tradicionais da visão e audição é que não temos um órgão especializado para determinar o sentido do tempo. A passagem do tempo parece ser percebida simultaneamente em diversas partes do nosso corpo. Os neurocientistas têm destinado esforços para compreensão dos processos que nos permitem sentir o tempo.
Durante milhares de gerações, os nossos antepassados organizaram as suas atividades seguindo o ciclo natural de sucessão dia e noite e da alternância das estações. O Sol, a Lua e os planetas constituíam os ponteiros do relógio celeste que determinavam o ritmo de suas existências.
Naquele período, o tempo era apenas uma sucessão de dias marcado por ciclos lunares e estações que se repetiam regularmente. De alguma forma, os mecanismos de funcionamento do nosso corpo se adaptaram ao ciclo dia e noite. Os seres vivos estão repletos de “relógios”, de diversos tipos: moleculares, neuronais, químicos, hormonais, mais ou menos em sincronia uns com os outros. Quando nossos antepassados sentiram a necessidade de dividir o dia em ciclos menores, inventaram os primeiros relógios.
A ideia de tempo evoluiu significativamente ao longo da história e foi moldada por diferentes culturas, descobertas científicas e avanços tecnológicos. Civilizações antigas, como os egípcios e os babilônios, começaram a medir o tempo observando os ciclos naturais, como o movimento do Sol e das estrelas. Em seguida, criaram relógios solares e relógios de água para dividir o dia.
Na antiga Grécia, pensadores como Aristóteles e Platão já discutiam a natureza do tempo. Para Platão, o tempo estava relacionado ao movimento dos seres; para Aristóteles, era a medida da mudança. Aristóteles afirmava que: o tempo é medida da mudança. As coisas mudam continuamente e chamamos tempo a medida, a contabilização dessa mudança. Se nada se move, não existe tempo.
Durante a Idade Média, a percepção do tempo foi profundamente influenciada pela religião, com foco em ciclos litúrgicos e na eternidade divina. No renascimento, com avanços na mecânica, surgiram os primeiros relógios mecânicos, oferecendo uma forma mais precisa de medir o tempo.
Isaac Newton (1643-1727) revolucionou nossa compreensão do universo com suas contribuições para a física, matemática e astronomia. Entre seus conceitos fundamentais está sua visão sobre o tempo, que estabeleceu as bases da física clássica e influenciou o pensamento científico por séculos. Com Newton, o tempo adquiriu uma consistência diferenciada, tornou-se sólido, independente, universal.
Newton reconhece que existe o tempo que mede os dias e os movimentos, o tempo de Aristóteles (relativo, aparente e comum), mas declara que, além deste, deve existir outro tempo verdadeiro que passa de qualquer modo e é independente das coisas e de seus acontecimentos. Isaac Newton solidificou o conceito de tempo
Na física newtoniana, o tempo é considerado uma grandeza absoluta – uma entidade universal que flui uniformemente, independente de qualquer observador ou sistema de referência. As principais características do tempo newtoniano são: o tempo é absoluto – flui uniformemente sem relação com qualquer objeto ou evento externo; é universal – o mesmo para todos os observadores, independentemente de onde estejam ou como se movam; é linear – progride constantemente do passado para o futuro; é contínuo – não possui intervalos ou lacunas; é independente do espaço – espaço e tempo são entidades complemente separadas.
Segundo Newton, se todas as coisas pararem imóveis e se até os movimentos da nossa alma se congelassem, o tempo absoluto continuaria a fluir, imperturbável e idêntico a si mesmo. Esse é, segundo newton, o tempo verdadeiro.
A concepção de tempo absoluto foi fundamental para o desenvolvimento da mecânica newtoniana. Ela permitiu que Newton formulasse suas leis do movimento e da gravitação universal com precisão matemática, estabelecendo uma estrutura dentro da qual o movimento poderia ser quantificado e preciso.
Na visão newtoniana, o universo funcionava como um mecanismo de relógio perfeitamente regulado pelo tempo absoluto. Para Newton, o tempo absoluto, verdadeiro e matemático é imperceptível. Ele deve ser deduzido, com cálculo e atenção, a partir da regularidade dos fenômenos.
O tempo absoluto adquiriu tal solidez que se tornou a maneira de pensar de todos nós e passou a fazer parte da nossa intuição.
A concepção newtoniana de tempo forneceu a base para o desenvolvimento da física clássica, permitiu avanços significativos na astronomia e na engenharia, influenciou profundamente a filosofia e a teologia e continua sendo útil e válida para a maioria dos fenômenos cotidianos. A imagem de tempo defendida por Newton prevalece até hoje na cabeça do cidadão comum, a imagem de um fluxo que passa continuamente como se fosse um rio no qual estamos mergulhados. Essa imagem implica aceitar que o tempo é o mesmo em todos os lugares, que o fluxo tem um sentido definido e faz sentido falar de passado, presente e futuro.
Apesar de sua elegância e poder explicativo, o conceito newtoniano de tempo absoluto tem sido questionado.
No início do século XX, Albert Einstein revolucionou nossa compreensão ao demonstrar na teoria da relatividade que o tempo é relativo, dependente da velocidade e do campo gravitacional.
Em consequência dessas novas teorias, os pilares que definiam aquele tempo independente, capaz de fluir automaticamente, começaram a ruir.
O primeiro pilar a ser derrubado foi o da uniformidade. Nós aprendemos, a partir da teoria da relatividade que o tempo passa mais devagar em alguns lugares e mais rápido em outros.
Albert Einstein descobriu que todos os corpos desaceleram o tempo nas suas proximidades. A Terra é um corpo grande, tem uma grande massa e desacelera o tempo nas suas proximidades. Desacelera mais no vale e menos na montanha, porque a montanha está um pouco mais distante do centro da Terra. Isso significa dizer que o tempo passa mais devagar no vale do que na montanha. Por isso, o indivíduo que mora no vale envelhece menos do que aquele que mora na montanha.
Esses fenômenos estão explicados na teoria da relatividade geral. De acordo com essa teoria, as coisas caem por causa da desaceleração do tempo. As coisas são atraídas para o lugar onde o tempo passa mais devagar. As coisas caem para perto dos corpos porque nas proximidades dos mesmos o tempo é desacelerado.
A conclusão dessa discussão é que o tempo não é mais o mesmo em todos os lugares. Existem vários tempos, um tempo diferente para cada ponto do espaço. O tempo não é mais único.
O segundo pilar começou a cair quando foi questionado o fato das causas precederam os efeitos e de não podermos mudar o passado.
A física se propõe a compreender os fenômenos que acontecem segundo a ordem do tempo. A física estuda como as coisas evoluem no tempo. As equações nos dizem como as coisas mudam à medida que o tempo contado no relógio passa.
Ao estudar as leis que descrevem os movimentos do mundo, encontramos que não existe diferença entre passado e futuro. Um tempo com sinal negativo funciona tão bem quanto aquele de sinal positivo. As equações físicas não distinguem o passado do futuro. Na descrição microscópica da matéria não existe nenhum sentido em que o passado seja diferente do futuro. Em outras palavras, o tempo perdeu a sua capacidade intrínseca de diferenciar o passado do futuro. Perdeu a sua capacidade de ser visto como um rio de fluxo independente.
O terceiro pilar esfarelado foi aquele que está relacionado com o fim do presente. Alberto Einstein mostrou que o tempo pode ser desacelerado pela velocidade. Esse fato traz uma consequência devastadora para nossa intuição do tempo. De acordo com a sua teoria, o tempo passa mais devagar para tudo que se move.
Se dois amigos combinarem para que um fique parado enquanto o outro caminha para frente e para traz, o tempo passará mais lentamente para aquele que está se movimentando. Esse efeito só é visível para grandes velocidades.
Quando os astronautas viajam em órbita a velocidades extremas, como na Estação Espacial Internacional, o tempo passa mais devagar para eles em relação às pessoas na Terra. Embora a diferença seja pequena, pode ser calculada usando a Teoria da Relatividade ou medida com o uso de relógios atômicos de alta precisão.
O quarto eixo do esfarelamento diz respeito ao significado do “agora”. Podemos verificar que não faz sentido perguntar o que uma pessoa estaria fazendo agora em uma estrela distante.
Sendo a velocidade de propagação da informação limitada pela velocidade da luz, a “pergunta” poderia levar alguns anos para chegar ao seu destino e a resposta levaria outros tantos anos para chegar de volta. Desse modo, o conceito de “agora” perde totalmente o sentido.
Se o leitor ficou perturbado com essas informações sobre o esfarelamento das ideias de tempo, sugiro que relaxe um pouco, pois outras pessoas já tiveram sentimentos semelhantes quando foram obrigadas a pensar sobre esse tema.
Dentre os famosos que refletiram sobre o tempo e concluíram tratar-se de um assunto difícil, cabe um destaque especial para Santo Agostinho. Ele disse no livro XI das Confissões: “O que é então o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; porém, se quero explicá-lo a quem me pergunta, então não sei”.
Por enquanto, a única coisa que podemos afirmar é que a solidez e o prestígio do tempo já não são os mesmos da época de Newton.
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